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sábado, 21 de setembro de 2013

Magali

É comum que as pessoas criem símbolos espontaneamente para o local ou região onde vivem, contribuindo para o fortalecimento da identidade e da autoestima. Muitas árvores são referidas na Bíblia como símbolos, representando fertilidades, abundância,imortalidade e são consideradas símbolos do bem e do mal. O cedro, por exemplo, é sinônimo de eternidade, a cerejeira; amor e amizade, a figueira; o conhecimento. 
Assim, sendo hoje o dia da árvore, é também o seu dia querida amiga Magali.
Se não puderes ser um pinheiro, no topo de uma colina,
Sê um arbusto no vale mas sê
O melhor arbusto à margem do regato.
Sê um ramo, se não puderes ser uma árvore.
Se não puderes ser um ramo, sê um pouco de relva
E dá alegria a algum caminho.

Se não puderes ser uma estrada,
Sê apenas uma senda,
Se não puderes ser o Sol, sê uma estrela.
Não é pelo tamanho que terás êxito ou fracasso...
Mas sê o melhor no que quer que sejas.
Pablo Neruda




   Parabéns! Felicidades, sempre!
Sua amiga e comadre Rosana


segunda-feira, 9 de setembro de 2013

O LEITOR "TRABALHADO" POR SUA LEITURA

O LEITOR "TRABALHADO" POR SUA LEITURA

http://efp-ava.cursos.educacao.sp.gov.br/Resource/601469,A7D/Assets/lingport/pdf/mgme_lingport_m3t45.pdf


Deixo o interior da França e gostaria de avançar com vocês um pouco mais nessa segunda vertente da leitura, a do diálogo entre o leitor e o texto. Eu lhes dizia que o leitor encontrava palavras, imagens, para as quais dava outros significados, cujo sentido escapava, não somente ao autor do texto, mas ainda àqueles que se esforçavam em impor uma única leitura autorizada. O leitor não é passivo, ele opera um trabalho produtivo, ele reescreve. Altera o sentido, faz o que bem entende, distorce, reemprega, introduz variantes, deixa de lado os usos corretos. Mas ele também é transformado: encontra algo que não esperava e não sabe nunca aonde isso poderá levá-lo.
É algo que veremos ao longo desse seminário. Para aprofundar um pouco o tema, darei alguns exemplos, colhidos em vários lugares, nas minhas leituras, nas entrevistas que realizei, nas observações de todo dia, e os comentarei. Mas sintam-se livres para interpretá-los de outra forma. Procederei dessa maneira em cada conferência, que vejo mais como um tempo de elaboração, um work in progress, como dizem os anglo-saxões, do que uma ocasião para lhes impor conclusões definitivas.
Acrescento que alguns dos temas que irei abordar agora poderão lhes parecer abstratos. E esta conferência é sem dúvida, nesse momento ao menos, a mais abstrata das quatro; primeiro, farei com que comam o pão amanhecido. Mas não se preocupem demais, voltaremos a todos esses temas de
maneira mais concreta no decorrer dos próximos dias, e tudo o que direi esta tarde fará sentido.
Começo por citar o psicanalista Didier Anzieu:
"Uma obra não trabalha o leitor — no sentido do trabalho psíquico— se ela lhe dá somente o prazer do momento, se ele fala dela como de um feliz acaso, agradável, mas sem futuro. O leitor que começa a ser trabalhado pela obra estabelece com ela uma espécie de ligação. Mesmo durante as interrupções de sua leitura, ao se preparar para retomá-la, ele se entrega a devaneios, tem sua fantasia estimulada e insere fragmentos dela entre as passagens do livro; sua leitura é um misto, um híbrido, um enxerto de sua própria atividade de fantasmatização sobre os produtos da atividade de fantasmatização do autor".
Existe algo na leitura, como diz Anzieu, que é da ordem do trabalho psíquico, no sentido em que os psicanalistas falam de trabalho do sonho, trabalho do luto, trabalho de criação. E uma dimensão que me parece essencial e que muitos leitores experimentam, mesmo aqueles provenientes de meios mais modestos; ainda que, naturalmente, não empreguem essas palavras para falar dela. No entanto, curiosamente, essa experiência corriqueira é, muitas vezes, silenciada ou desconhecida. Não é da ordem da "educação" nem do "prazer", e as divisões habituais que opõem "leituras úteis" a "leituras de distração" não permitem que se perceba isso. Para que possamos compreender um pouco melhor de que maneira
a leitura pode trabalhar o leitor, citarei vários jovens com os quais realizamos nossas entrevistas.
A primeira chama-se Fanny e tem 21 anos. Diz: "Gosto quando existe liberdade para o leitor. Os romances que não tomam os leitores por imbecis, que não lhes explicam tudo, que nos deixam um pouco fazer nosso próprio caminho".
O segundo é Ridha. Vou citá-lo longamente:
"Quando eu era criança, às vezes o bibliotecário "parava seu trabalho e contava histórias para nós. Isso me tocou muito, a sensação, a emoção que senti naquele instante, permaneceu. E algo parecido com um encontro. Ninguém me disse: faça isso, faça aquilo [...]. Mas, me mostraram alguma coisa, fizeram-me entrar em um mundo. Abriram-me uma porta, uma possibilidade, uma alternativa entre milhares talvez, uma maneira de ver que talvez não seja necessariamente aquela a se seguir, que não seja necessariamente a minha, mas que vai mudar alguma coisa na minha vida porque talvez existam outras portas.
Quando eu era pequeno, os livros representavam tantas alternativas, tantas possibilidades, saídas, soluções para problemas, e tantas pessoas e individualidades quantas eu podia encontrar no mundo. Pela diversidade dos livros, das histórias, existe uma diversidade de coisas e é como a diversidade dos seres que povoam essa terra e que todos gostaríamos de conhecer e lamentamos que em cem anos não estaremos mais aqui e não teremos conhecido as pessoas que vivem no Brasil ou em outros lugares [...].
Se não houvesse diversidade, se houvesse apenas uma cor, tudo seria monótono. Se você entra em um jardim, certamente tem prazer em ver as flores amarelas no campo, mas é muito mais bonito encontrar outros campos com flores diferentes, porque se tiver apenas flores amarelas em todo o planeta, em um certo momento você enjoará do amarelo [...]. Se existe uma diversidade, isso enriquece a pessoa. Para mim, a criança, nessa idade, exige uma diversidade de coisas. Ela quer se deslumbrar. E tudo passa pelas imagens. E nós não somos necessariamente obrigados a ver esta imagem, podemos ouvir a voz do contador de histórias e sonhar...
Acredito que o sentimento de asfixia que uma pessoa pode experimentar se dá quando ela sente que tudo está imóvel, que tudo ao seu redor está petrificado [...]. Se realmente for uma pessoa que estiver fraca, numa situação que a impeça de se mover, é desesperador. E como um passarinho preso numa gaiola, esquecido em algum lugar e que morre ali dentro.
A biblioteca ideal é a que permite que as crianças sonhem e que não lhes imponha idéias, imagens ou histórias, mas que lhes mostre possibilidades, alternativas. Essas coisas terão uma ligação profunda com sua vida adulta, mais tarde. Ler histórias, pura e simplesmente, talvez só pelo prazer de contar, mostrar que se pode sonhar, que existe saída e que nem tudo está imóvel. Que inventem sua vida, que é possível inventar a própria vida. E que talvez, para inventar a própria vida,
seja preciso primeiro a matéria-prima; é preciso ter sonhado para poder sonhar e criar.
A busca de si mesmo, o encontro consigo mesmo, é a coisa mais importante para um ser humano, um indivíduo.
Essas reflexões são muito ricas; este rapaz toca no essencial em vários pontos, me parece. Tem 22 anos, vem de uma família numerosa. Seus pais vieram da Argélia, não sabem ler nem escrever. Infelizmente, ele teve de interromper seus estudos.
Citarei outro rapaz, Daoud, de origem senegalesa. Diz:
"Para mim, a leitura não é uma diversão, é algo que me constrói. A biblioteca me permitiu imaginar filmes, fazer meus próprios filmes como se eu fosse um diretor. Ia com freqüência à biblioteca para ler histórias em quadrinhos, mas parava nos livros. Às vezes, lia o resumo de livros grossos e densos, imaginava a história; lia a primeira página, a primeira linha e presumia tudo o que se passava".
Vejam que Daoud, como Ridha, associa o fato de construir-se a si mesmo com a alteração produzida pelo encontro com um texto, até mesmo com uma simples linha. E a partir dessas palavras escritas por um outro, que as imagens e as palavras lhe vêm e que elabora seu próprio filme, como ele diz. Esses rapazes dizem, com suas próprias palavras, o mesmo que disse o psicanalista Didier Anzieu. Lembram-nos que é sempre na intersubjetividade que os seres humanos se constituem; que o leitor não é uma página em branco onde se imprime o texto:
desliza sua fantasia entre as linhas, a entremeia com a do autor. As palavras do autor fazem surgir suas próprias palavras, seu próprio texto.
Agora eu gostaria de me apoiar em um escritor. No decorrer desses dias, citarei com freqüência escritores, pois estes são leitores por excelência e costumam observar com muita atenção o que lhes sucede ao ler. Citarei um antilhano, Patrick Chamoiseau. Em seu livro Caminho da escola, ele fala de sua relação com a língua e com a escola durante sua infância. O livro é construído em dois tempos: primeiro tempo, "o desejo"; segundo tempo, "a sobrevivência".
No primeiro tempo, o rapaz, o "negrinho" como diz Chamoiseau, vive fascinado por essa escola aonde vão seus irmãos e irmãs mais velhos. Fascinado por essas letras traçadas em seus cadernos ou nos tabiques do corredor da casa. Um dia, seu irmão mais velho escreve cuidadosamente alguma coisa na altura de seus olhos. Eu cito:
— Adivinha o que é? — perguntou-lhe.
—O que é?
—É o teu nome que está aí... você está aí dentro! — revelou-lhe com um sorriso de feiticeiro.
O negrinho se viu ali, prisioneiro de um traçado de giz. Poderiam, desse modo, apagá-lo do mundo!...".
Assim o menino decidiu copiar mil vezes; desesperadamente, o traçado de seu nome, "de maneira a multiplicar e evitar um genocídio". E toma "gosto por aprisionar pedaços da realidade em seus traços de giz".
Além da escrita, ele é também fascinado pelos livros e aventura-se a explorar uma caixa onde sua mãe guardava obras de Júlio Verne, Lewis Carroll, Stevenson, Daniel Defoe, no fundo de um armário, sob roupas de luto. Seus irmãos e irmãs haviam recebido esses livros como prêmios na escola. Cito novamente:
"O negrinho recompunha os livros a partir das imagens. Imaginava histórias e esforçava-se em encontrá-las nos textos impressos sempre indecifráveis [...].
Construía suas próprias histórias, propagando-as entre as letras incompreensíveis e as seguia obscuramente, frase por frase, desse modo, até o final. Aprendeu a amplificar um acontecimento para que correspondesse ao número de linhas de uma página. Soube se lançar de uma imagem até alcançar a seguinte, adaptando-se bem a este exercício. Tinha-se impressão de que lia; na realidade, lia o que sua delirante imaginação projetava no livro.
Ali, antes mesmo que soubesse decifrar, o jovem herói "lia", no sentido de que o livro desencadeava nele toda uma atividade de fantasmatização, de construção narrativa. E como o poder de decifrar as letras enigmáticas, assim como o de aprisionar pedaços do mundo com o giz pareciam provir da escola, pede incessantemente para freqüentá-la.
Passado algum tempo feliz nos primeiros anos da educação infantil, logo se desencantará. No começo do ensino fundamental terá um aprendizado que engessa seu corpo, seu espírito e sua língua. E a imposição de uma língua estrangeira — o francês, a língua do colonizador — sobre o crioulo, que era sua expressão nativa. As crianças aprendem a se vigiar, a
extirpar de suas bocas qualquer expressão crioula, a corrigir suas pronúncias, a se afastar do falar de suas mães. Mas a língua será também o instrumento de sua sobrevivência. Quer compreender os mistérios da escrita, mergulha nas letras, enche páginas inteiras com sua pena, não para agradar o mestre repressivo, mas para ele mesmo. E Chamoiseau conclui o livro com essas palavras: "nessa pilhagem de seu universo natal, nessa ruína interior tão paralisante, o negrinho, debruçado sobre seu caderno, traçava, sem saber muito bem, um rastro de sobrevivência".
No final das contas, Chamoiseau se apropriará dessa língua do colono que devastou seu universo natal, conhecerá seus contornos como poucos franceses. Porém revolucionará suas formas, fazendo dela uma outra coisa, uma língua-mosaico, encravada de palavras colhidas na diversidade do Caribe.
Chamoiseau evoca em outro livro, Escrever em país dominado, esta inversão, este movimento, do momento em que se é prisioneiro do traçado das letras do outro, preso no grilhão de uma língua ou de uma cultura colonial, até o momento em que a escrita do outro, pouco a pouco, lhe dá um espaço e lhe permite ocupar um lugar na língua, encontrando aí suas próprias palavras, seu próprio modo de dizer ou escrever. Ele ressalta esse poder fértil das palavras de um escritor: "Ao final de uma leitura, o mundo apresentado pelo livro continua tendo uma vida autônoma dentro de nós. Nos vemos forçados a criar novas histórias a partir desse mundo". Relata, em particular, a história de uma prisão onde trabalhou como educador e de um jovem detento martinicano para quem levava livros em segredo. Uma vez mais, a inversão
vai se produzir graças à leitura. E não qualquer leitura; tratava-se de grandes escritores: V. S. Naipaul, Lezama Lima, Nicolas Guillen, William Faulkner, Jorge Amado, Garcia Marquez, Augusto Roa Bastos, Miguel Ángel Astúrias. Pouco a pouco, o Caribe, as colônias da América vão ocupando a cela, e o jovem entra no jogo. Cito:
"Ele lia. Ele escrevia. Lia. Escrevia. Minha amizade recente com o chefe da segurança lhe rendeu uma máquina de escrever. Passava seus dias, suas noites sobre ela. [...] Ao vê-lo escrever, tive consciência do potencial da leitura-escrita em uma situação extrema. Meu novo amigo havia recriado para si uma densidade que anulava a repressão do cárcere. Não tinha mais rancores, mas sim desejos. Projetava-se com confiança. Irradiava energia".
"Não tinha mais rancores, mas sim desejos." Mesmo que não sejamos antilhanos, sabemos hoje que toda cultura tem uma estrutura colonial. Ao menos é o que diz o filósofo Jacques Derrida: "Toda cultura é originalmente colonial [...]. Toda cultura se institui pela imposição unilateral de alguma 'política' da língua. O domínio, sabemos, começa pelo poder de nomear, impor e legitimar as designações". No mesmo livro, porém, algumas páginas adiante, Derrida evoca também o momento em que, jovem judeu crescido na África do Norte, foi "fisgado pela literatura e filosofia francesas":
"Flechas de metal ou de madeira, corpo penetrante de palavras invejáveis, temíveis, inacessíveis mesmo quando
entravam em mim, frases das quais era preciso se apropriar, domesticar, amansar [...] talvez destruir, em todo caso marcar, transformar, talhar, entalhar, forjar, enxertar, tornar diferente, para dizerem de outra maneira, para si e em si".
E expõe esse sonho, não de ferir a língua ou maltratá-la, mas de fazê-la converter-se em outra coisa, "essa língua que permanece intacta, sempre venerável e venerada".
Novamente, esse movimento do qual falava Chamoiseau. Mas, de um modo mais abrangente, mesmo que a leitura não faça de nós escritores, ela pode, por um mecanismo parecido, nos tornar mais aptos a enunciar nossas próprias palavras, nosso próprio texto, e a ser mais autores de nossas vidas.
Nessa leitura, o escritor e o leitor constroem-se um ao outro; o leitor desloca a obra do escritor, e o escritor desloca o leitor, às vezes revelando nele um outro, diferente do que acreditava ser. Disse "o escritor" e não "o autor". E agora há pouco, para falar do leitor trabalhado por seu encontro com um texto, passamos da leitura em geral para essa experiência particular que é a leitura de uma obra literária. Efetivamente, na literatura, o escritor faz justamente um trabalho de alteração da língua. É o que dizia Roland Barthes, que destacava a profunda ligação entre língua e poder: "a linguagem é uma legislação", dizia, ou melhor: "Assim que ela é proferida, seja na intimidade mais profunda do sujeito, a língua entra a serviço de um poder". Porém Barthes observava também:
"[...] só resta, por assim dizer, trapacear com a língua, trapacear a língua. Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem, eu a chamo, quanto a mim: literatura. [...] As forças de liberdade que residem na literatura não dependem da pessoa civil, do engajamento político do escritor que, afinal, é apenas um 'senhor' entre outros, nem mesmo do conteúdo doutrinal de sua obra, mas do trabalho de deslocamento que ele exerce sobre a língua [...]".
Não examinarei aqui a experiência da leitura literária; não sou particularmente qualificada para isso, e seriam necessarias não quatro conferências, mas anos. Gostaria apenas de propor algumas balizas, parciais, fragmentárias. Vou tomá-las de empréstimo, ainda esta vez, aos escritores. Mas vocês poderão ver que voltaremos a encontrá-las nos próximos dias, na boca de leitores menos eruditos.
Por exemplo: ler permite ao leitor, às vezes, decifrar sua própria experiência. É o texto que "lê" o leitor, de certo modo é ele que o revela; é o texto que sabe muito sobre o leitor, de regiões dele que ele mesmo não saberia nomear. As palavras do texto constituem o leitor, lhe dão um lugar.
Os escritores, sobretudo, colocam palavras ali onde dói. Como escreve Jean Grenier: "Vim dar meu testemunho, diz o escritor, para tirar esse peso de seu peito. Não pode nos curar; mas lhe agradecemos por ter visto nosso mal". As palavras podem manter a dor e o medo a distância; as palavras que
lemos, as que escrevemos, as que ouvimos. Muitos escritores falaram sobre isso de diferentes maneiras. Como Rilke, no início de Os cadernos de Malte Laurids Brigge: "Fiz algo contra o medo. Fiquei sentado e escrevi". Ou o escritor austríaco Winckler, que observa: "Com minhas palavras, desenho uma prisão ao redor do temor". E ao redor de nosso próprio temor. De um modo semelhante, no conto, por exemplo, diferentemente do pesadelo, as sombras são mantidas a distância pelos símbolos. O escritor suíço Nicolas Bouvier observa que, no Japão, os contos "administram e controlam a imensa fauna de fantasmas perniciosos que povoam e percorrem a noite, sobretudo no verão".
Os escritores nos ajudam a nomear os estados pelos quais passamos, a distingui-los, a acalmá-los, a conhecê-los melhor, a compartilhá-los. Graças a suas histórias, escrevemos a nossa, por entre as linhas. E porque tocam o mais profundo da experiência humana — a perda, o amor, o desespero da separação, a busca de sentido — não há razão para que os escritores não toquem cada um de nós. E é exatamente nesse ponto que jovens escritores vindos de meios desfavorecidos podem, muitas vezes, se encontrar com eles. Com freqüência esses jovens relatam como certos textos, nobres ou humildes — mas também filmes ou canções —, lhes ajudaram a viver, a pensar em si mesmos, a mudar um pouco seu destino. E não somente na adolescência.
Uma vez mais acredito que, com essa dimensão da leitura em que a leitura "trabalha" o leitor, estamos longe das divisões estabelecidas que opõem, por exemplo, os partidários da leitura "utilitária" aos da leitura de entretenimento. Quando
encontro palavras que me perturbam porque permitem expressar o que tenho de mais íntimo, assumo que isso é algo "útil" ou é um "prazer"? Como disse Freud, talvez seja algo que está "além" do prazer...
Por meio dessa leitura, desses encontros, elaboramos um espaço interior, um país próprio, inclusive em contextos onde parece não nos ter sobrado nenhum espaço pessoal, como é o caso do jovem prisioneiro martinicano. É o que diz um outro escritor, Pascal Quignard, para quem a página lida "é o outro mundo que se opõe a todos os lugares por onde se ramifica a família e onde se encaixam a pequena cidade, a nação e o conjunto dos contemporâneos". Ou é o que diz Agiba, uma jovem que entrevistei e que adora ler desde a infância: "Tinha um segredo, meu universo próprio. Minhas imagens, meus livros e tudo isso. Meu mundo está nos sonhos".
Esse mundo, como ela observa, tem a ver com o segredo. De um lado, ele protege da repressão, que atinge tudo o que diz respeito ao íntimo (voltarei a isso quando falar sobre o medo do livro), protege da intrusão de seus pais ou de educadores indiscretos. Mas há ainda outra coisa: a idéia de que toda palavra verdadeira tem uma dimensão oculta. Muitos escritores afirmaram isso, que a leitura tem a ver com o segredo, com a noite, com o amor e com a dissolução da identidade. E ela pede o mesmo pudor que o amor. Marguerite Duras observou em uma entrevista: "Pode ser que se leia sempre no escuro. A leitura é da ordem da obscuridade da noite. Mesmo quando lemos em pleno dia, ao ar livre, se faz noite ao redor do livro". E Michel de Certeau: "Ler é estar em outro lugar, ali onde eles não estão, em outro mundo [...] é
criar cantos de sombra e de noite em uma existência submetida à transparência tecnocrática".
Esse espaço íntimo aberto pela leitura não é apenas uma ilusão ou uma válvula de escape. Às vezes pode ser: nós nos consolamos das vidas, dos amores que não vivemos, com as histórias dos outros. Mas é, sobretudo uma fuga para um lugar em que não se depende dos outros, quando tudo parece estar fechado. Isso nos dá a idéia de que é possível uma alternativa. Esse espaço íntimo é muito povoado: passam por ali fragmentos de frases, escritas ou ditas por outros, que juntamos e que revelam essa parte oculta de nós mesmos.
E esse espaço íntimo nos dá um lugar. A partir daí, dessa outra maneira de ocupar o tempo que nos é dado quando lemos, temos uma outra percepção do que nos cerca. E podemos dar sentido às nossas vidas, construir um sentido. Como o construiremos? Com histórias, diz Salman Rushdie: "Por meio das histórias, nos construímos". Diz também, em Pátrias imaginárias: "O significado é um edifício que construímos com fragmentos, dogmas, feridas de infância, artigos de jornais, observações feitas ao acaso, velhos filmes, pequenas vitórias, pessoas que odiamos, pessoas que amamos".
Parece-me que tem razão: é a partir de fragmentos, apanhados aqui e ali, que fabricamos o sentido. O sentido não é, ou não é mais, em nossa época de fim das ideologias, um sistema total que dirá a última palavra, a razão de ser de nossa presença na terra. Ainda uma citação, a propósito dessa busca de sentido, desta vez de um escritor americano, Richard Ford. O narrador, ao lembrar do pai que lia para ele, observa o seguinte: "Quando lia para mim, talvez procurasse me dizer:
'Não sabemos tudo. A vida tem mais significados do que parece. F preciso ficar atento'".24 O significado não é algo dado: é alguma coisa para a qual nos inclinamos, um movimento, uma disposição, uma capacidade de acolher. Uma forma de estar atento, como ele diz.
Às vezes, a leitura nos dá o apoio de uma definição. De uma forma, uma ordenação. Sentimos que existe, em alguns textos escritos por escritores, um pouco mais de verdade que em outras formas de expressão lingüística. Porque o escritor quebra os estereótipos, renova a linguagem, caça os clichês — o bom escritor, ao menos. E é um dos raros que fala das contradições e das ambivalencias das quais somos feitos. Inclusive, é sobre essas contradições, essa parte obscura do coração humano, que ele, com mais freqüência, trabalha.
Esses são alguns dos fragmentos sobre a experiência da leitura de obras literárias. Apoiei-me bastante nesses leitores muito eruditos e muito cultos que são os escritores. Mas amanhã vocês verão que, com outras palavras, muitos jovens leitores de meios sociais desfavorecidos dizem coisas parecidas. E eu gostaria de insistir no fato de que a leitura de obras literárias, quando representa uma experiência singular, não é uma afetação. Infelizmente, os pobres são privados, na maior parte do tempo, dessa experiência, pois não têm acesso aos livros, ou só têm acesso a alguns livros: dizem que outros não são para eles. É um tema sobre o qual voltaremos a falar.
No entanto, existem pessoas dos setores mais pobres da população que tiveram a oportunidade de ter acesso aos livros, e experimentaram — em alguns casos por meio de um único texto — toda a amplitude da experiência da leitura.
Nela, encontraram palavras que as transformaram, as trabalharam, às vezes muito tempo após tê-las lido. Inversamente, certas pessoas nascidas em bairros ricos falam de literatura nos salões e sentimos, ao ouvi-las, que nunca passaram por essa experiência, essa transformação. Procuraram nos livros apenas um modo de impressionar os amigos. Falam de literatura, mas é como se pessoas frígidas fizessem um discurso sobre o amor carnal.
Longe dos salões, podemos lembrar também como as palavras dos poetas ajudaram a "sustentar" aqueles que se encontravam sob sofrimentos extremos; podemos evocar todos aqueles que, na dor, mantiveram a dignidade recitando versos. Lembremos do papel que estas palavras representaram para tantas pessoas, nos campos de concentração, durante a Segunda Guerra Mundial. Ou, para outros, nos campos stalinistas. De maneira mais geral, gostaria de dizer que talvez não exista exclusão pior que a de ser privado de palavras para dar sentido ao que vivemos. E nada pior que a humilhação, no mundo atual, de ficar excluído da escrita.
É com emoção que vou lhes contar agora uma recordação. Todo ano, viajo um pouco pela Grécia; eu falo com bastante fluência o grego moderno. Um verão, em uma dessas viagens, conheci uma senhora, no campo, que me contou sua vida. Nasceu em uma família de dez crianças e muito cedo foi adotada por um tio que precisava de uma pastora. Porém, era tão curiosa a respeito de tudo, que a professora da cidadezinha conseguiu que a deixassem ir à escola por alguns meses. Até uma manhã em que seu tio veio buscá-la para que levasse as cabras para pastar. Ela nos disse: "E todos os dias da minha
vida, no meio dos animais, desenhei com um graveto as letras de meu nome na terra para que o sono não as levasse".
Acho essa história comovente e é a primeira vez que a conto em público. Exponho-a simplesmente para lembrar-lhes como uma pessoa pode se sentir fora do mundo quando não pôde se apropriar da escrita. Aprendemos a olhar as civilizações orais de um modo diferente, sabemos que podiam ser territórios de cultura muito elevada. Mas, hoje em dia, na maioria das sociedades, ficar excluído da escrita é ficar excluído do mundo. Muitas pessoas que não têm acesso à escrita ou não conhecem bem seus usos, sentem-se indignas. Por isso não posso concordar aqui com alguns de meus colegas antropólogos que, em nome de princípios mais nobres, gostariam que mantivéssemos longe da contaminação da escrita um ou outro grupo étnico, como um modo de preservar sua particularidade.
Ao compartilhar a leitura, ao contrário, cada pessoa pode experimentar um sentimento de pertencer a alguma coisa, a esta humanidade, de nosso tempo ou de tempos passados, daqui ou de outro lugar, da qual pode sentir-se próxima. Se o fato de ler possibilita abrir-se para o outro, não é somente pelas formas de sociabilidade e pelas conversas que se tecem em torno dos livros. É também pelo fato de que ao experimentar, em um texto, tanto sua verdade mais íntima como a humanidade compartilhada, a relação com o próximo se transforma. Ler não isola do mundo. Ler introduz no mundo de forma diferente. O mais íntimo pode alcançar neste ato o mais universal.
A pobreza material é temível porque priva a pessoa não apenas dos bens de consumo que tornam a vida menos dura, mais fácil, mais agradável; não apenas dos meios de proteger a própria intimidade; mas também dos bens culturais que conferem dignidade, compreensão de si mesmo e do mundo, poesia; e priva ainda das trocas que são realizadas em torno desses bens. A pobreza impede de participar em uma sociedade, de estar ligado ao mundo através do que produziram aqueles que o integram: esses objetos culturais que circulam e desembocam em outros círculos diferentes do parentesco ou do bairro, que são o espaço do íntimo e do que se compartilha para além das fronteiras do espaço familiar. E para se pensar, se definir, muitas vezes, só resta aos pobres se ligar a uma comunidade mítica ou a um território, mesmo que seja um pedaço de calçada.
Pois bem, fiz um longo périplo sobre essas duas vertentes da leitura, detendo-me na segunda, em que o leitor dialoga com o texto, em que é trabalhado e alterado por ele.

domingo, 8 de setembro de 2013

Aprender a viver





Para aprender a viver com sinceridade é preciso conviver com as crianças. A simplicidade e o encanto de seus gestos nos traz ânimo e alegria para exercitar a função de ser sincero. Se fosse possível escolher, neste estágio da vida, gostaria de ser como elas. Pequenos gestos e elas explodem de felicidade. Poucas coisas as alimentam. Mas a verdade é que, os adultos, sempre insatisfeitos, buscam sonhos gratos nos quais, em caminhos desconhecidos, carregam pedras e levam pontapés. Porém, quanto mais o tempo passa, mais me convenço de que o homem é um quebra-cabeça. "Faltando peças."

sábado, 7 de setembro de 2013

Sol e ... Manjericão








Numa dessas manhãs ensolaradas, em que as pessoas acordam felizes e as flores mais crespas. Sinto o ar perfumado do manjericão que  impregna meu quintal. É sábado e, pela fresta da porta vejo o sol dourando os pelos avermelhados do meu vira-lata de estimação. Poderia dedicar-me a lavar roupa ou qualquer arrumação de gavetas. Porém, essa sensação de bem-estar proporcionada por acordar, após oito horas de sono reparador, ao lado de minhas netinhas, não seria desperdiçada nesta manhã, realmente belíssima.
Observo as meninas, ainda dormindo, minha cara resplandece de felicidade e adoto um ar de "dona do mundo". Com delicadezas e atenções que elas recebem com desdém, fazendo inclinações à direita e à esquerda, ofereço meu amor e a certeza de um dia mais feliz!


sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Lencinho Vermelho

NOVE CHAPEUZINHOS
Flavio de Souza


NA CAPITAL DO IMPÉRIO DO BRASIL, EM 1888                                                                   LENCINHO VERMELHO  

                                                                                                                                                                  Uns diziam que a pena já estava na mão direita da princesa Isabel, filha de dom Pedro II, o imperador do Brasil. E que a escravidão ia ser abolida. Mas outros diziam que a pena vivia caindo da mão da princesa, que relutava em assinar documento tão importante. Porque a escravidão era importante para algumas pessoas importantes. No final do século XIX, na cidade do Rio de Janeiro, muitas pessoas ainda eram tratadas como se fossem inferiores. Pior que isso, eram tratadas como se não fossem pessoas. Pior ainda, eram tratadas como se fossem animais, como vacas, bois e cavalos. E só eram bem tratadas o suficiente para permanecer com saúde e poder realizar tarefas pesadas em plantações e usinas de açúcar, entre outros lugares. Esses seres humanos tinham vindo, contra a vontade, da África. Ou eram filhos ou netos de quem tinha vindo de lá, de locais que hoje se chamam Angola, Senegal, Guiné, Congo, Moçambique... Mas então, no ano de 1888, no dia 13 de maio, a princesa assinou a tal da Lei Áurea, que libertou os africanos ou filhos ou netos ou bisnetos de africanos. Só que essa liberdade só existia, para valer, no papel. Porque eles estavam do lado errado do oceano Atlântico. Porque a casa onde eles ou os pais ou avós ou bisavós deles tinham morado ficava na África. E eles estavam na América do Sul. Então eles não tinham um lar para onde voltar. Não tinham dinheiro para comprar ou alugar um lugar para morar. Não tinham emprego. Não tinham diploma. Não tinham o tipo de educação necessário para conseguir um emprego remunerado. Então a maioria deles continuou morando e trabalhando para os antigos donos. Na teoria, homens livres. Na prática, ainda escravos. Foi nesse ano e nessa cidade, que no século seguinte ganhou o apelido de "cidade maravilhosa", que esta história se passou. Bibinha acordou com as galinhas, naquela hora em que até o dia ainda está em dúvida se vai raiar. Como sempre fazia, desde quando tinha três ou quatro anos, a menina magricela e lindinha pulou da cama e logo tratou de ir à cozinha. Lá tomou um golinho do caldo de canjica que era seu primeiro café-da-manhã. Foi ao tanque, lavou a cara, bochechou, ajeitou o cabelo pixaim, penteando-o como uma coroa. Vestiu o avental, que depois segurou formando uma tendinha. Jogou nela as migalhas deixadas de lado pela dona Dita, a rainha do forno a lenha. E foi alimentar suas amigas. Quando tinha acabado de contar seu último sonho para a Ruiva, sua preferida, ouviu a mãe, que por coincidência era aquela mesma dona Dita já antes mencionada, chamá-la: "Bárbara! Venha cá buscar um embornal para levar para sua avozinha, que está doente e sozinha, depois que morreu a sinhazinha." Bibinha, mal ganhou a broa de milho que era seu segundo café-da-manhã, junto com um golinho que na verdade era bem um golão de café com leite, correu para seu cantinho. Lá, enrolou e amarrou e ajeitou seu lenço da sorte. Esse lenço era um pano tecido por aquela mesma avó já mencionada. Isso bem antes de estar como estava naquele dia: cansada e
sozinha, desde a morte da sinhazinha. Como não saía de casa sem o lenço vermelho enrolado na cabeça, muitas vezes Bibinha era chamada carinhosamente, ou nem tanto, de "Sacizinha". Porque o lenço vermelho bem que parecia mesmo o capuz de um pretinho maroto de uma perna só. Mas havia também quem a chamasse de "Lencinho Vermelho". E foi assim, vestida do pescoço para cima como saci, que saiu pelo portão dos fundos. Atravessou a horta. Pulou o muro. E foi, pirilampa, descendo a ladeira. As ruas ainda estavam escuras e vazias. Quase vazias, para dizer a verdade, porque as velhas beatas arrastavam os chinelos para assistir à primeira missa. E os pedintes, que tinham dormido pelas calçadas, se levantavam para evitar dormir atrás das grades na noite seguinte. Bibinha ia à missa também, mas só aos domingos e dias santos. Mas na imaginação da menina, os deuses, heróis, fantasmas e monstros africanos, trazidos na bagagem de seus avós, se misturavam com Jesus, Nossa Senhora e todos os santos. Ela não acreditava em nada daquilo. Mas nem por isso aquilo tudo deixava de existir. Foi assim que, justo naquela praça, onde ficavam só prédios antigos do governo, aonde os funcionários só iam chegar muito, mas muito mais tarde mesmo, que Bibinha se encontrou com o tutu marambá, um tipo de bicho-papão daqueles tempos. Esse era só um dos vários tutus que existiam, um daqueles que podiam, dançando, virar gente. Esse já tinha virado. E veio cantando, alegre, gingando. Parando na frente da menina, falou zumbindo nas palavras: "Óia quem tá vindo, e tá indo adonde?" "Tô indo visitar minha avozinha, que está magra e doente. Mas para chegar na casa dela eu ainda tenho de subir e descer dois morros." "Mas que neta de ouro, vejam só!" Bibinha não tinha como saber que aquele senhor era um tutu disfarçado. E contou a ele tudo o que tinha no balaio, embrulhado em guardanapos, do cuscuz ao doce de batata-doce. E o tutu, enquanto a menina contava, ia cantarolando uma canção. Acontece que essa canção era encantadora, de fazer as crianças ficarem com sono. E quem está com sono faz coisas que não faria se estivesse bem acordado. Foi assim que esse tutu marambá convenceu a menina a contar direitinho onde morava sua avó, que estava sozinha depois da morte da sinhazinha. Então, enquanto a menina subia e descia os dois morros que ainda faltavam para chegar na casa da avó, o tutu voava por cima, porque desta vez tinha se transformado em besouro. E ele logo chegou ao quintal da avó de Bibinha, onde a velha dormia na rede da varanda. A avó, por sinal, se chamava Bárbara, como a neta, mas era conhecida como "Nhá Bá". Mesmo adormecida, comia uma banana-da-terra e uma espiga de milho. E ao mesmo tempo pitava o cachimbinho apagado. De besouro, o tutu se transformou em pilão. E se fez grande, enorme, gigantesco. E disse: "Óia quem tá aqui, Nhá Bá!" A velhinha acordou espantada, cuspiu o cachimbo e o que de banana e de milho estava em sua boca, e gemeu: "Vixe! É um tutu marambá virado pilão enorme de grande! Ou Nhá Bá tá engomando a gola da camisola de baba, de tão doida?" O tutu não conseguiu mentir, e disse que ela não estava doida não, que ele era tudo aquilo, e que ela ia morrer naquele instante. Ela agradeceu, porque finalmente ia voltar para Ndongo, de onde tinha sido roubada. O tutu não parou para ouvir mais nada. E colocando a pobre velha dentro de si, socou a vovozinha até fazer uma paçoca apetitosa daquelas. Voltou a ser tutu, e a
engoliu com um bocado de farinha de mandioca. Depois deitou na rede, para jiboiar e esperar a menina. Bibinha chegou logo depois e já foi chamando a avó: "Vó Bá, sou eu, a Bibi!" "Vixe! E não é que é você mesmo?", disse o tutu, pensando que conseguia imitar a voz da avó, que tinha virado paçoca. "Vixe digo eu, vovozinha! Vó Bá, mas a senhora tá com voz de tutu!" "Mas não é mesmo de espantar?", perguntou o tutu. E sem mais vontade de jogar conversa fora, logo se transformou em pilão com fome de paçoca. Bibinha tinha a pele bem escura, lisinha e macia. Mas se você estivesse lá, ia ver a menina ficar branca por causa do susto que levou. E parada, esbugalhada feito um espantalho ela ficou, enquanto o tutu-pilão ia ficando grande, enorme, gigantesco. Foi então que Bibinha lembrou que tinha de cantar aquela canção que a avó cantara tantas vezes. Era só cantar a canção de ninar que o bicho-papão ia embora. Mas cadê voz? Rouquinha de tudo, Bibinha tentou soltar um arzinho que fosse, que acompanhado de palavras, mesmo que só pensadas, já iam causar o fim daquele sofrimento. O tutu marambá, que além de mau era trocista, disse rindo todo alegre para a menina: "Óia! Não fique triste não, que dentro em pouco você vai conhecer a tal de Nhangaba, a terra de onde sua avó veio." "Que Nhangaba o quê, bicho burro!?! Foi de Ndongo que ela veio!" Menina e monstro ficaram se olhando, os dois tinham percebido ao mesmo tempo que a voz da menina tinha voltado. E ele já levantou o pau do pilão em que tinha se transformado, para dar o primeiro golpe. Mas foi ficando molinho, molengo, sorumbático, porque Bibinha, lépida e ligeira, cantou assim: Tutu marambá, não venha mais cá que a mãe da criança te manda matar! Tutu marambá, não venha assustar que o pai do nenê vai te pegar! E assim aquele tutu foi se desmilingüindo, virando mingau. E de dentro dele foi saindo Nhá Bá, feito gente de novo. Só que agora ela não estava mais sozinha, coitadinha, depois da morte da sinhazinha. Porque lá estava sua netinha querida e lindinha, a Bibinha. Para quem a espantada senhora exclamou: "Vixe! Que sonho doido teve sua avó Bá! Fui de mulher a paçoca, e de bolo no estômago de papão voltei a mulher, num rápido de repente. E agora, contente, com a presença de minha criança preferida, amém!" E então aconteceu que Nhá Bá, depois de passar um paninho no chão da varanda, ainda viveu um montão. E sua neta cresceu e casou e teve filhos, e os filhos deles contaram para os filhos, que contarão aos filhos, que viverão felizes para sempre e contarão a quem quiser ouvir as aventuras de Nhá Bibi, a mulher que, quando menina, venceu o tutu marambá!


O MEDO DA INTERIORIDADE

O MEDO DA INTERIORIDADE


Esse medo ocorre principalmente com os rapazes, que são reféns de grupos que lhes oferecem um sentimento de inclusão, em que se "garantem" e se controlam uns aos outros. Pois além dos pais temerosos de que os livros levem seus filhos longe demais, além dos professores que nem sempre conseguem transmitir que ler não significa necessariamente submeter-se a um sentido imposto, além disso tudo existem os amigos. E os comportamentos de fracasso ou de rejeição à escola, ao conhecimento, à leitura, constituem uma armadura que eles confundem com virilidade, e são reforçados pelo desejo de não serem rechaçados pelo grupo. Um assistente social contou-me que no bairro em que trabalhava, quando um rapaz se sentia tentado a se aproximar dos livros, os membros de seu grupo lhe diziam: "Não vá. Você vai perder a sua força".
Freqüentemente, nos meios populares, o "intelectual" é considerado suspeito; é colocado de lado como um pária, considerado um "puxa-saco", maricas, traidor de sua classe, de suas origens etc. Muitos sociólogos e escritores têm relatado isso em diferentes países. Inclino-me a pensar que se trata de algo amplamente compartilhado, para além das fronteiras, mesmo que, naturalmente, as variações culturais sejam importantes. Darei alguns exemplos, pois é preciso conhecer muito bem essa forma
de resistência para, eventualmente, poder ajudar os jovens a contorná-la.
Acompanhemos o escritor Andrei Makine: a história se passa na Rússia; o narrador é um adolescente interno em um pensionato e que gosta muito de ler:
"A sociedade em miniatura de meus colegas me reservava, seja uma condescendência absorta (eu era um 'imaturo', não fumava e não contava histórias obscenas em que os órgãos genitais masculinos e femininos eram os principais personagens), seja uma agressividade cuja violência coletiva me deixava perplexo: eu me sentia muito pouco diferente dos outros, não acreditava que eu merecesse tanta hostilidade. É verdade que eu não me extasiava diante dos filmes que sua minissociedade comentava durante os recreios, não diferenciava um time de futebol do outro, dos quais eram torcedores fanáticos. Minha ignorância os ofendia, viam nela um desafio. Atacavam-me com suas ironias, com seus punhos".1
Acompanhemos agora o escritor Paul Smail, que descreve o pátio de recreio de uma grande escola de Paris. O narrador é de origem kabila:
"Comecei a lutar boxe aos treze anos. Estava na 8a série do Jacques-Decour [trata-se da escola] e, a cada recreio, me cobriam de socos. E na saída me tiravam tudo: meu gorro, minha jaqueta, minha mochila... Por quê? Porque eu era
1 Le Testament français, Paris, Mercure de France, 1995, p. 139.
o mais jovem, justamente, e tinha as melhores notas. Porque as meninas gostavam de mim. Porque eu lia o tempo todo. Porque não me sentia desonrado em responder quando o professor interrogava a classe. Porque um dia, o professor de francês leu minha redação para toda a classe, usando-a como modelo. Porque, como meu pai, eu achava importante falar corretamente [...]. Quando vejo no jornal da TV uma notícia sobre o genocídio que os Hutus cometeram contra os Tutsis, eu revejo o pátio da escola Jacques-Decour".2
Vejam agora os adjetivos atribuídos pelos alunos de escolas técnicas ou profissionalizantes na França, ao aluno que gosta de ler: é um "palhaço", um "pretensioso" de óculos, "filhinho (ou filhinha) de papai", um desajeitado, sem personalidade, alguém que acredita ser melhor que os outros, um doente, um tapado, um solitário, um chato etc. Como disse François de Singly, o sociólogo que comenta essa pesquisa: "Basta escutar a descrição de um aluno que gosta muito de ler feita por seus colegas de um curso de contabilidade, para entender que, se existe um jovem como este, vive escondido".3
De fato ele se esconde. O sociólogo Erving Goffman, em seu livro Stigmate, nos dá mais um exemplo, desta vez na Inglaterra, de um "bandido" que se esconde de seus conhecidos para ir à biblioteca: "Eu ia a uma biblioteca
2 Vivre me tue, Paris, Balland, 1997, pp. 26-7.
3 Les Jeunes et la lecture, Ministère de l'Éducation Nationale et de la Culture, Dossier Éducations et Formations, 24, jan. 1993, p. 124.
pública perto de onde morava e olhava para trás duas ou três vezes antes de entrar, só para estar seguro de que não havia ninguém que me conhecia nas redondezas e que poderia me ver naquele momento".4
Nos meios populares, mas não só neles, existe a idéia de que ler efeminiza o leitor. Num livro intitulado Psiu, que trata do amor pela leitura, escrito por Jean-Marie Gourio, o pai do narrador, que até então nunca havia tocado um livro, um dia compra um pequeno tratado médico. E ei-lo caminhando pelas ruas, não sabendo como carregar esse objeto insólito:
"esse pequeno livro de poucos gramas lhe pesava na extremidade do pulso e lhe deixava a nuca tensa, sendo que ainda mancava um pouco em conseqüência de seu ferimento; com seu livro, papai dava a impressão de ser um verdadeiro inválido! E logo — faltavam apenas trinta metros a percorrer — sentiu-se aliviado de poder colocar sua aquisição sobre o balcão. Parecia até que tinham lhe pedido que caminhasse de vestido e salto alto!".5
O narrador, por sua vez, que se apaixonou por uma bibliotecária e se deixa levar pelos devaneios, pelas metáforas, observa: "Antes, nunca tinham me ocorrido semelhantes excentricidades; eu mesmo teria me chamado de maricás".
4 Stigmate: les usages sociaux des handicaps, Paris, Minuit, 1975, p. 13 [ed. original: Stigma: Notes on the Management of Spoiled Identity, 1963].
5 Chut, Paris, Julliard, 1998, p. 54.
Essa associação entre o fato de se aproximar dos livros e o risco de perder a virilidade pode ocorrer diante de tudo o que é escrito e que apresenta o risco de influenciar o leitor, ainda que de forma momentânea: esses rapazes confundem deixar sua carapaça de lado por uns minutos e se precipitar num abismo de fraqueza. Mas isso fica particularmente claro no caso de leituras que têm muito a ver com a interioridade. Para os rapazes, não é fácil aceitar que haja neles um espaço vazio em que se pode acolher a voz de um outro; e esse tipo de leitura pode ser percebido, inconscientemente, como algo que os expõe ao risco de castração. A passividade e a imobilidade que a leitura parece exigir podem também ser vividas como algo angustiante. De fato, abandonar-se a um texto, deixar-se levar, deixar-se tomar pelas palavras, pressupõe talvez, para um rapaz, ter que aceitar, que assimilar seu lado feminino. Se isso é algo relativamente fácil nas classes médias ou em um meio burguês — onde existem outros modelos de virilidade, onde a cultura letrada é reconhecida como um valor —, é particularmente difícil em um meio popular, onde os rapazes se mantêm sob estreito controle mútuo.
Os conflitos socioculturais podem reforçar ou mascarar os medos mais inconscientes: esses rapazes talvez não suportem a dúvida, a sensação de carência que acompanha todo aprendizado, e se sintam perseguidos por palavras que os remetem a interrogações arcaicas, à morte, ao sexo, aos mistérios da vida, à perda.
Não esqueçamos a antiga associação entre o livro, o conhecimento e os mistérios do sexo. Encontramos, aliás, sinal disso no fato de que muitas vezes obtemos os primeiros conhecimentos sobre o sexo no dicionário. Se a curiosidade foi por muito tempo considerada um defeito, isso não deixa de ter relação com o fato de que, segundo a psicanálise, a pulsão de conhecimento se origina na curiosidade sexual da infância. De maneira mais precisa, a curiosidade consiste, num primeiro momento, em saber do que é feito o interior do corpo e, por excelência, o interior do corpo materno. Melanie Klein e James Strachey, por exemplo, mostraram que havia uma equivalência para o inconsciente entre os livros e o corpo materno. Melanie Klein escreveu: "Ler significa, para o inconsciente, tomar o conhecimento do interior do corpo da mãe [...] o medo de despojá-la é um fator importante nas inibições em relação à leitura".
Alberto Manguei também reconhece isso em sua História da leitura, quando diz:
"O medo popular do que um leitor possa fazer entre as páginas de um livro é semelhante ao medo intemporal que os homens têm do que as mulheres possam fazer em lugares secretos de seus corpos, e do que as bruxas e os alquimistas possam fazer em segredo, atrás de suas portas trancadas".
Se estou indo um pouco longe, é justamente para que sintam que a leitura não é uma atividade anódina à qual,
freqüentemente, alguns gostariam de reduzi-la. E para dizer também que é possível ajudar os jovens a superarem esses medos: por exemplo, na França, o psicoterapeuta Serge Boimare reconcilia os rapazes com a leitura apresentando-lhes mitos, contos, poesias, metáforas, que enriquecem seu imaginário, graças aos quais eles podem filtrar esses sentimentos inquietantes que a leitura e as situações de aprendizagem despertam neles e que paralisam seu pensamento. Ao ler para eles a cosmogonia de Hesíodo, os contos de Grimm ou os romances de Júlio Verne, Boimare lhes permite simbolizar fantasmas muito arcaicos. Assim, sua necessidade de controle e de domínio, sua rigidez, dão pouco a pouco espaço para movimentos psíquicos.
Alguns rapazes fazem, espontaneamente, uma escolha diferente da virilidade gregária: uma escolha pela busca de si mesmos. Fiquei particularmente surpresa com o número de rapazes que me disseram gostar de ler ou escrever poesia. Mas é claro que não comentam com seus amigos, para evitar a repressão que sofre todo aquele que é "estudioso". É o caso de Nicolas, que diz:
"Se pensamos: 'esse aí vai gozar de mim...', isso mostra como a vergonha tem um peso muito grande sobre a leitura e a escrita. São coisas reservadas para uma elite. Tenho um amigo que adora frequentar galerias de arte e com ele acontece a mesma coisa: se vai ao clube de esportes, vai guardar isso pra si, não vai falar disso com
ninguém... Abrir-se com os outros é cruel demais... A quantidade de gente que lê e que nunca fala disso é enorme".
Na realidade, nos meios populares, não é qualquer rapaz que vai seguir o caminho da leitura. Com freqüência é aquele que, por alguma razão, se diferencia do grupo. Ouçamos novamente Nicolas:
"Não acho que eu seja do tipo que fica vagando pelas ruas. Nunca me integrei ao grupo, porque não tinha a noção de grupo [...]. Foi por isso que fui obrigado a sair da escola. Dois deles me causaram problemas. Fui mais forte que eles, porém todo o grupo caiu em cima de mim, e eles eram cinqüenta pessoas. Não tive escolha: deixei a escola, deixei os amigos, eu sentia muito medo".
Vamos ouvir agora Jacques-Alain, que é um leitor assíduo: "Sempre fui um menino solitário e diferente, voltado para dentro [...]. Meus amigos eram os livros". Ou Roger, num outro contexto, o do campo. Roger é um agricultor autodidata:
"De onde me vem esse amor pelos livros? Sabe, aos vinte anos, eu caminhava pela vila, tentava passar desapercebido, não dizia bom-dia a ninguém. Eira muito tímido. Voltado para dentro. Nunca joguei futebol, detesto o bar. Gostava de andar de bicicleta, por quê? Como explicar... Não sei. De qualquer maneira, sempre gostei de ler".
Para terminar, ouçamos Richard Hoggart, um intelectual originário das classes populares inglesas, que escreveu sua autobiografia:
"Precisava descobrir algo por mim mesmo, desviar-me do caminho traçado, realizar minhas próprias descobertas, encontrar minhas próprias inspirações, fora daquilo que os professores propunham e muito além do que diziam a maior parte de meus colegas. Esse caminho passava pela biblioteca municipal...".
A individualização e a leitura caminham juntas, mas talvez a leitura pressuponha, ao menos para os rapazes, uma saída prévia do grupo, ou uma dificuldade em fazer parte dele ou, ainda, um desejo de diferenciar-se dele. E essa diferença é, em seguida, encorajada, elaborada, de maneira decisiva, pela leitura.
Vamos observar que isso pode ocorrer também, em menor proporção, para as meninas. Como ocorreu com Lea, uma jovem de dezessete anos, oriunda do Zaire, que vive na periferia parisiense: "Eles, eles andam em grupo. Eu, ao contrário, quando venho à biblioteca, venho sozinha. Prefiro fazer minhas coisas sozinha, não tenho espírito de coletividade".
Mesmo entre aqueles que frequentam bibliotecas, há alguns que só vão em grupo para fazer suas tarefas, e que nunca tomarão gosto pela leitura ou descobrirão algo por si mesmos. Enquanto há outros que algum dia irão se
aventurar sozinhos entre as estantes. Por que, então, alguns permanecem sempre colados aos outros sem que jamais lhes ocorra abrir um livro, enquanto outros traçam um caminho singular em direção à leitura? Por um lado, é uma questão de temperamento pessoal; por outro, existe o pressuposto de que o jovem usuário de uma biblioteca tenha uma autonomia que, na realidade, espera-se que tanto a leitura como a biblioteca ajudem a construir. Porém, elas podem apenas encorajar, contribuir para isso. Se a leitura e a biblioteca ajudam muito quem tem vontade de mudar, de se tornar diferente, de "desviar do caminho traçado", isso é muito mais incerto para quem está pouco seguro desse desejo.
Dizendo de outra forma, a leitura pode reforçar a autonomia, mas o fato de alguém se entregar a ela já pressupõe uma certa autonomia. A leitura ajuda a pessoa a se construir, mas pressupõe, talvez, que ela já tenha se construído o suficiente e que suporte ficar a sós, confrontada consigo mesma. Em termos psicanalíticos, a leitura ajuda a elaborar a "transicionalidade", para usar a expressão de Winnicott, porém pressupõe que se tenha tido acesso a essa transicionalidade, que se tenha saído do estado da "fusão".
Para ler livros e, mais ainda, para ler literatura — que é algo que perturba, que põe em questão a segurança, as relações de pertencimento —, é necessária uma estruturação mínima do sujeito? Que margem de manobra dispomos para atrair as pessoas para a leitura, jovens ou menos jovens, que necessitam de uma identidade feita de
concreto armado (pela falta de uma verdadeira segurança em relação à identidade)? Não sei, seria preciso refletir mais sobre isso com psicanalistas e psicólogos.
Se não se pode trabalhar nesse sentido, então teremos, na maior parte do tempo, dois caminhos: alguns vão escolher o espírito de grupo viril, e terão medo do encontro consigo mesmo que a leitura implica, medo da alteração que ela acarreta e da carência que ela pode significar; e outros vão escolher um caminho singular. Evidentemente, um homem que não tem medo de sua própria sensibilidade me parece muito mais maduro, mais humano, que aqueles que se deslocam em hordas, alardeando ruidosamente a força de seus músculos. Não escondo minha preocupação ao observar que na França, segundo pesquisas recentes, a divisão entre rapazes e moças tem se acentuado no que toca à leitura: três quartos dos leitores de romances hoje em dia são leitoras. Então, o que fazer para que os rapazes tenham menos medo da interioridade, da sensibilidade?
Como lhes transmitir, em particular, a experiência de outros homens que nela encontraram dimensões infinitamente desejáveis? Como o escritor Jean-Louis Baudry, que escreveu um belo texto sobre sua relação com a leitura — e com as mulheres —, do qual extraio algumas frases:
"A leitura me parecia uma atividade especificamente destinada às mulheres, como, por exemplo, a dança. Os homens só participavam dela na medida em que esta os conduzia mais diretamente às mulheres. Ler um livro era
se fazer de cavalheiro a serviço dos prazeres de sua dama, que eram, antes de tudo, prazeres de expressão. A leitura era tão feminina que feminilizava aqueles que, como meu pai, entregavam-se a ela. Feminilizava-os a ponto de torná-los capazes de refletir a luz dessas virtudes que as mulheres resplandeciam, virtudes associadas ao exercício e ao domínio da linguagem: inteligência, sutileza, fineza, imaginação, e o dom que elas pareciam possuir de enxergar além das aparências. Mas sobretudo, e talvez um pouco paradoxalmente, a leitura constituía um dos atributos da autonomia que eu lhes atribuía".
Uma vez mais, a leitura se vê associada às mulheres. Mas, para esse escritor, longe de torná-la desprezível, ao contrário, é o que constitui seu encanto, seu atrativo.
Eis aí, portanto, um certo número de "materiais" sobre o medo em relação ao livro. Eu os levei a passear por muitos lugares — dos campos franceses às margens da Arábia, dos fantasmas arcaicos às plantações escravagistas, e imagino que já devam estar mareados. Assim, sem ter a pretensão de dizer a última palavra sobre tudo isso, pois a questão é imensa e permanece aberta, o que podemos observar se nos esforçarmos em recapitular um pouco? Haverá algo em comum, claro que em graus muito diferentes, entre os fundamentalistas religiosos, os rapazes preocupados com a perda de sua virilidade, os pais que temem perder o controle sobre seus filhos etc. Etc.?
Talvez seja o temor de perder o domínio sobre algo. O medo de se ver confrontado com a carência, com a pluralidade de sentidos, com a contradição, a alteridade, de se perceber múltiplo. O medo de ver a identidade desmoronar, quando esta é vista como algo monolítico, imutável, total. Ou talvez seja, ao menos, a dificuldade de passar de um modo em que a identidade é vivida como uma entidade fixa, preservada por um alto grau de oclusão diante do outro, para um modo no qual a identidade é concebida mais como um processo, um movimento, e o outro é visto como uma possibilidade de enriquecimento.
Aquele que fica à distância dos livros teme perder alguma coisa, enquanto o que se aproxima deles sente que tem algo a ganhar. O primeiro teme se confrontar com uma carência, que tenta negar com todas as suas forças. O segundo acredita que, por meio dos livros, e em particular da literatura, poderá, ao contrário, apaziguar seus medos. E o que diz o escritor italiano Alessandro Baricco:
"A literatura deve ser um meio para que possamos enfrentar a tristeza da realidade, os nossos medos e o silêncio. Ela deve tentar pronunciar palavras, pois temos medo do desconhecido e do inominável. Acredito que todas as histórias — tanto as minhas como as de outros escritores — são apenas elaborações linguísticas complexas que tentam dar um nome a nossas feridas, a nossos medos, tornando-os, deste modo, menos assustadores. É o imenso valor ético e civil das narrações
[...]. Se muitas pessoas leem meus livros, é porque sentem, como eu, medo da realidade, ainda que não tenham consciência disso. [...] Se conhecemos o que nos assusta, podemos enfrentá-lo. Nomear é conhecer. Portanto, os escritores nos ajudam a dominar nossos medos. Pessoalmente, prefiro a dominação das narrações à dominação exercida pela ciência, a filosofia ou a religião. No filósofo, no erudito ou no padre, há sempre uma espécie de autoridade que não se encontra no escritor".6
Além do mais, quem evita os livros vê neles algo de desencorajador, de austero, distante da vida. Enquanto o leitor sabe que eles podem ser uma fonte de infinito prazer. E para dar um pouco mais de leveza, gostaria de dizer que aqueles que tiveram acesso aos livros evocam, antes de tudo, o prazer de ler. Darei a palavra a eles antes de continuar a percorrer os caminhos pelos quais nos tornamos leitores.
Alguns falam da leitura como um exercício vital ("se a pessoa não lê, morre; ler alimenta a vida"), ou como uma história de amor, de amor à primeira vista. Estes se deixam tocar, invadir pelo texto, se entregam a suas aventuras, se abandonam à alteração: "Kundera mudou minha maneira de ler", conta-nos uma jovem.
6 Magazine Littêraire, fev. 1998, p. 81.
"Eu o reli e dessa vez ele me transformou completamente. Deixei de me perguntar o que pensava, ou sobre o que estava ou não de acordo; ele me surpreendia, às vezes me chocava, e a partir disso se deu uma nova descoberta da leitura e dos livros. Já não se tratava de autores e de idéias que podiam me agradar, mas sim do fato de que podiam me trazer algo de diferente".
A leitura pode ser um caso de paixão que não espera, como ocorre com essa mulher, mãe de três filhos, que diz: "Se é realmente apaixonante, me envolvo e não importa que meus filhos gritem, tenham fome, não tem problema: preparo-lhes um ovo frito e volto correndo para minha leitura". E aqueles que amam ler encontram caminhos alternativos que lhes permitem entregar-se a essa paixão, como este agricultor:
"Você sabe, eu e minha mulher tivemos sete filhos; isso é algo que realmente mantém uma pessoa ocupada. Minha esposa ajudava na igreja, ensinava o catecismo. Sempre encontramos um jeito de dividir o trabalho, nós nos virávamos. Então, não me venha com essa história de 'não tenho tempo'. Isso não existe. Quando queremos nos organizar, nós conseguimos".
Para essas pessoas, o gosto pela leitura toma muitas vezes a forma de uma incorporação ávida, de uma questão oral. Vejamos algumas expressões que apareceram nas
entrevistas: "ler até ficar saciado", "devorei tudo", "saboreei", "é como uma guloseima", "é algo saboroso, saboroso", "queria saborear tudo", "têm aqueles que assaltam a geladeira, eu assalto a biblioteca" etc. Com muita freqüência, a intensa necessidade de leitura, a incapacidade de liberar-se dela, faz com que seja comparada a uma droga. Como diz essa mulher: "Os livros são como uma droga. Se não lemos, podemos morrer. Meu marido leu toneladas de livros, leu todas as bibliotecas da cidade, sempre leu e continua lendo o tempo todo. E uma doença. Lia até enquanto comia, não fazia outra coisa".


http://efp-ava.cursos.educacao.sp.gov.br/Resource/601469,A74/Assets/lingport/pdf/mgme_lingport_m3t17.pdf

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Um sonho de ser gaúcha-tchê!!


Certo ano de 2002, talvez em julho, recebo a notícia de minha comadre que acabava de realizar um sonho!
" Estou morando no Rio Grande do Sul!"; e, muito feliz!
Acabara de passar por situações muito difíceis: deixara o filho que tanto amava ou melhor ..." abriu mão", conforme relato.
Ah! Amada amiga , como sofri contigo! E chorei, sim , admito que não pude suportar!
" Só o tempo pode nos mostrar certas coisas" "... e eu consegui ter paciência para esperar"   " quero que você aprenda com a experiência dos mais velhos" " procure tirar proveito para sua vida"  " observe e analise as experiências das pessoas que te cercam". Então, minha querida, apesar do longo tempo, reconhece tais conselhos direcionados pra sua afilhada?
Sim, o tempo passou... e, com ele seus conselhos deram excelentes frutos! Você foi, à distância, a melhor madrinha, a melhor amiga que pude escolher!
Amo você, amo sua família( também à distância), sempre... para a vida inteira!
Enquanto houver memória, escrita e... coração,tudo será registrado!


Para sempre, com amor e grande admiração: Rosana





terça-feira, 3 de setembro de 2013

Estrelinha da manhã


Naquele ano, porém, me dediquei  a esperar alguém bem especial. No mês de minhas férias escolares, janeiro de 2007, em algumas circunstâncias, fervilhavam os pensamentos. Não tinha sido imaginação, sonho.
Sem o menor sinal de angústia, parecia que a única coisa que interessava no mundo, era o mês de Agosto.   E, quase sem se dar conta de que a felicidade estava a caminho, o tempo se  transformava em pretexto pra buscarmos por afinidades apenas.
Eu confesso que, ambas encontramos nobres razões pra estarmos lado a lado, sempre!  Era como se, de repente, uma réstia
de sol, extraordinariamente, iluminasse nossos corações!

 Lavínia, luz do sol!
 Estrelinha da manhã,
Vaga-lume e girassol!

18/08/2007     Minha netinha Lavínia
                       Feliz aniversário!    
                       Vovó te ama muito!!