O LEITOR "TRABALHADO" POR SUA LEITURA
http://efp-ava.cursos.educacao.sp.gov.br/Resource/601469,A7D/Assets/lingport/pdf/mgme_lingport_m3t45.pdf
Deixo o interior da França e gostaria de avançar com vocês um pouco mais nessa segunda vertente da leitura, a do diálogo entre o leitor e o texto. Eu lhes dizia que o leitor encontrava palavras, imagens, para as quais dava outros significados, cujo sentido escapava, não somente ao autor do texto, mas ainda àqueles que se esforçavam em impor uma única leitura autorizada. O leitor não é passivo, ele opera um trabalho produtivo, ele reescreve. Altera o sentido, faz o que bem entende, distorce, reemprega, introduz variantes, deixa de lado os usos corretos. Mas ele também é transformado: encontra algo que não esperava e não sabe nunca aonde isso poderá levá-lo.
É algo que veremos ao longo desse seminário. Para aprofundar um pouco o tema, darei alguns exemplos, colhidos em vários lugares, nas minhas leituras, nas entrevistas que realizei, nas observações de todo dia, e os comentarei. Mas sintam-se livres para interpretá-los de outra forma. Procederei dessa maneira em cada conferência, que vejo mais como um tempo de elaboração, um work in progress, como dizem os anglo-saxões, do que uma ocasião para lhes impor conclusões definitivas.
Acrescento que alguns dos temas que irei abordar agora poderão lhes parecer abstratos. E esta conferência é sem dúvida, nesse momento ao menos, a mais abstrata das quatro; primeiro, farei com que comam o pão amanhecido. Mas não se preocupem demais, voltaremos a todos esses temas de
maneira mais concreta no decorrer dos próximos dias, e tudo o que direi esta tarde fará sentido.
Começo por citar o psicanalista Didier Anzieu:
"Uma obra não trabalha o leitor — no sentido do trabalho psíquico— se ela lhe dá somente o prazer do momento, se ele fala dela como de um feliz acaso, agradável, mas sem futuro. O leitor que começa a ser trabalhado pela obra estabelece com ela uma espécie de ligação. Mesmo durante as interrupções de sua leitura, ao se preparar para retomá-la, ele se entrega a devaneios, tem sua fantasia estimulada e insere fragmentos dela entre as passagens do livro; sua leitura é um misto, um híbrido, um enxerto de sua própria atividade de fantasmatização sobre os produtos da atividade de fantasmatização do autor".
Existe algo na leitura, como diz Anzieu, que é da ordem do trabalho psíquico, no sentido em que os psicanalistas falam de trabalho do sonho, trabalho do luto, trabalho de criação. E uma dimensão que me parece essencial e que muitos leitores experimentam, mesmo aqueles provenientes de meios mais modestos; ainda que, naturalmente, não empreguem essas palavras para falar dela. No entanto, curiosamente, essa experiência corriqueira é, muitas vezes, silenciada ou desconhecida. Não é da ordem da "educação" nem do "prazer", e as divisões habituais que opõem "leituras úteis" a "leituras de distração" não permitem que se perceba isso. Para que possamos compreender um pouco melhor de que maneira
a leitura pode trabalhar o leitor, citarei vários jovens com os quais realizamos nossas entrevistas.
A primeira chama-se Fanny e tem 21 anos. Diz: "Gosto quando existe liberdade para o leitor. Os romances que não tomam os leitores por imbecis, que não lhes explicam tudo, que nos deixam um pouco fazer nosso próprio caminho".
O segundo é Ridha. Vou citá-lo longamente:
"Quando eu era criança, às vezes o bibliotecário "parava seu trabalho e contava histórias para nós. Isso me tocou muito, a sensação, a emoção que senti naquele instante, permaneceu. E algo parecido com um encontro. Ninguém me disse: faça isso, faça aquilo [...]. Mas, me mostraram alguma coisa, fizeram-me entrar em um mundo. Abriram-me uma porta, uma possibilidade, uma alternativa entre milhares talvez, uma maneira de ver que talvez não seja necessariamente aquela a se seguir, que não seja necessariamente a minha, mas que vai mudar alguma coisa na minha vida porque talvez existam outras portas.
Quando eu era pequeno, os livros representavam tantas alternativas, tantas possibilidades, saídas, soluções para problemas, e tantas pessoas e individualidades quantas eu podia encontrar no mundo. Pela diversidade dos livros, das histórias, existe uma diversidade de coisas e é como a diversidade dos seres que povoam essa terra e que todos gostaríamos de conhecer e lamentamos que em cem anos não estaremos mais aqui e não teremos conhecido as pessoas que vivem no Brasil ou em outros lugares [...].
Se não houvesse diversidade, se houvesse apenas uma cor, tudo seria monótono. Se você entra em um jardim, certamente tem prazer em ver as flores amarelas no campo, mas é muito mais bonito encontrar outros campos com flores diferentes, porque se tiver apenas flores amarelas em todo o planeta, em um certo momento você enjoará do amarelo [...]. Se existe uma diversidade, isso enriquece a pessoa. Para mim, a criança, nessa idade, exige uma diversidade de coisas. Ela quer se deslumbrar. E tudo passa pelas imagens. E nós não somos necessariamente obrigados a ver esta imagem, podemos ouvir a voz do contador de histórias e sonhar...
Acredito que o sentimento de asfixia que uma pessoa pode experimentar se dá quando ela sente que tudo está imóvel, que tudo ao seu redor está petrificado [...]. Se realmente for uma pessoa que estiver fraca, numa situação que a impeça de se mover, é desesperador. E como um passarinho preso numa gaiola, esquecido em algum lugar e que morre ali dentro.
A biblioteca ideal é a que permite que as crianças sonhem e que não lhes imponha idéias, imagens ou histórias, mas que lhes mostre possibilidades, alternativas. Essas coisas terão uma ligação profunda com sua vida adulta, mais tarde. Ler histórias, pura e simplesmente, talvez só pelo prazer de contar, mostrar que se pode sonhar, que existe saída e que nem tudo está imóvel. Que inventem sua vida, que é possível inventar a própria vida. E que talvez, para inventar a própria vida,
seja preciso primeiro a matéria-prima; é preciso ter sonhado para poder sonhar e criar.
A busca de si mesmo, o encontro consigo mesmo, é a coisa mais importante para um ser humano, um indivíduo.
Essas reflexões são muito ricas; este rapaz toca no essencial em vários pontos, me parece. Tem 22 anos, vem de uma família numerosa. Seus pais vieram da Argélia, não sabem ler nem escrever. Infelizmente, ele teve de interromper seus estudos.
Citarei outro rapaz, Daoud, de origem senegalesa. Diz:
"Para mim, a leitura não é uma diversão, é algo que me constrói. A biblioteca me permitiu imaginar filmes, fazer meus próprios filmes como se eu fosse um diretor. Ia com freqüência à biblioteca para ler histórias em quadrinhos, mas parava nos livros. Às vezes, lia o resumo de livros grossos e densos, imaginava a história; lia a primeira página, a primeira linha e presumia tudo o que se passava".
Vejam que Daoud, como Ridha, associa o fato de construir-se a si mesmo com a alteração produzida pelo encontro com um texto, até mesmo com uma simples linha. E a partir dessas palavras escritas por um outro, que as imagens e as palavras lhe vêm e que elabora seu próprio filme, como ele diz. Esses rapazes dizem, com suas próprias palavras, o mesmo que disse o psicanalista Didier Anzieu. Lembram-nos que é sempre na intersubjetividade que os seres humanos se constituem; que o leitor não é uma página em branco onde se imprime o texto:
desliza sua fantasia entre as linhas, a entremeia com a do autor. As palavras do autor fazem surgir suas próprias palavras, seu próprio texto.
Agora eu gostaria de me apoiar em um escritor. No decorrer desses dias, citarei com freqüência escritores, pois estes são leitores por excelência e costumam observar com muita atenção o que lhes sucede ao ler. Citarei um antilhano, Patrick Chamoiseau. Em seu livro Caminho da escola, ele fala de sua relação com a língua e com a escola durante sua infância. O livro é construído em dois tempos: primeiro tempo, "o desejo"; segundo tempo, "a sobrevivência".
No primeiro tempo, o rapaz, o "negrinho" como diz Chamoiseau, vive fascinado por essa escola aonde vão seus irmãos e irmãs mais velhos. Fascinado por essas letras traçadas em seus cadernos ou nos tabiques do corredor da casa. Um dia, seu irmão mais velho escreve cuidadosamente alguma coisa na altura de seus olhos. Eu cito:
— Adivinha o que é? — perguntou-lhe.
—O que é?
—É o teu nome que está aí... você está aí dentro! — revelou-lhe com um sorriso de feiticeiro.
O negrinho se viu ali, prisioneiro de um traçado de giz. Poderiam, desse modo, apagá-lo do mundo!...".
Assim o menino decidiu copiar mil vezes; desesperadamente, o traçado de seu nome, "de maneira a multiplicar e evitar um genocídio". E toma "gosto por aprisionar pedaços da realidade em seus traços de giz".
Além da escrita, ele é também fascinado pelos livros e aventura-se a explorar uma caixa onde sua mãe guardava obras de Júlio Verne, Lewis Carroll, Stevenson, Daniel Defoe, no fundo de um armário, sob roupas de luto. Seus irmãos e irmãs haviam recebido esses livros como prêmios na escola. Cito novamente:
"O negrinho recompunha os livros a partir das imagens. Imaginava histórias e esforçava-se em encontrá-las nos textos impressos sempre indecifráveis [...].
Construía suas próprias histórias, propagando-as entre as letras incompreensíveis e as seguia obscuramente, frase por frase, desse modo, até o final. Aprendeu a amplificar um acontecimento para que correspondesse ao número de linhas de uma página. Soube se lançar de uma imagem até alcançar a seguinte, adaptando-se bem a este exercício. Tinha-se impressão de que lia; na realidade, lia o que sua delirante imaginação projetava no livro.
Ali, antes mesmo que soubesse decifrar, o jovem herói "lia", no sentido de que o livro desencadeava nele toda uma atividade de fantasmatização, de construção narrativa. E como o poder de decifrar as letras enigmáticas, assim como o de aprisionar pedaços do mundo com o giz pareciam provir da escola, pede incessantemente para freqüentá-la.
Passado algum tempo feliz nos primeiros anos da educação infantil, logo se desencantará. No começo do ensino fundamental terá um aprendizado que engessa seu corpo, seu espírito e sua língua. E a imposição de uma língua estrangeira — o francês, a língua do colonizador — sobre o crioulo, que era sua expressão nativa. As crianças aprendem a se vigiar, a
extirpar de suas bocas qualquer expressão crioula, a corrigir suas pronúncias, a se afastar do falar de suas mães. Mas a língua será também o instrumento de sua sobrevivência. Quer compreender os mistérios da escrita, mergulha nas letras, enche páginas inteiras com sua pena, não para agradar o mestre repressivo, mas para ele mesmo. E Chamoiseau conclui o livro com essas palavras: "nessa pilhagem de seu universo natal, nessa ruína interior tão paralisante, o negrinho, debruçado sobre seu caderno, traçava, sem saber muito bem, um rastro de sobrevivência".
No final das contas, Chamoiseau se apropriará dessa língua do colono que devastou seu universo natal, conhecerá seus contornos como poucos franceses. Porém revolucionará suas formas, fazendo dela uma outra coisa, uma língua-mosaico, encravada de palavras colhidas na diversidade do Caribe.
Chamoiseau evoca em outro livro, Escrever em país dominado, esta inversão, este movimento, do momento em que se é prisioneiro do traçado das letras do outro, preso no grilhão de uma língua ou de uma cultura colonial, até o momento em que a escrita do outro, pouco a pouco, lhe dá um espaço e lhe permite ocupar um lugar na língua, encontrando aí suas próprias palavras, seu próprio modo de dizer ou escrever. Ele ressalta esse poder fértil das palavras de um escritor: "Ao final de uma leitura, o mundo apresentado pelo livro continua tendo uma vida autônoma dentro de nós. Nos vemos forçados a criar novas histórias a partir desse mundo". Relata, em particular, a história de uma prisão onde trabalhou como educador e de um jovem detento martinicano para quem levava livros em segredo. Uma vez mais, a inversão
vai se produzir graças à leitura. E não qualquer leitura; tratava-se de grandes escritores: V. S. Naipaul, Lezama Lima, Nicolas Guillen, William Faulkner, Jorge Amado, Garcia Marquez, Augusto Roa Bastos, Miguel Ángel Astúrias. Pouco a pouco, o Caribe, as colônias da América vão ocupando a cela, e o jovem entra no jogo. Cito:
"Ele lia. Ele escrevia. Lia. Escrevia. Minha amizade recente com o chefe da segurança lhe rendeu uma máquina de escrever. Passava seus dias, suas noites sobre ela. [...] Ao vê-lo escrever, tive consciência do potencial da leitura-escrita em uma situação extrema. Meu novo amigo havia recriado para si uma densidade que anulava a repressão do cárcere. Não tinha mais rancores, mas sim desejos. Projetava-se com confiança. Irradiava energia".
"Não tinha mais rancores, mas sim desejos." Mesmo que não sejamos antilhanos, sabemos hoje que toda cultura tem uma estrutura colonial. Ao menos é o que diz o filósofo Jacques Derrida: "Toda cultura é originalmente colonial [...]. Toda cultura se institui pela imposição unilateral de alguma 'política' da língua. O domínio, sabemos, começa pelo poder de nomear, impor e legitimar as designações". No mesmo livro, porém, algumas páginas adiante, Derrida evoca também o momento em que, jovem judeu crescido na África do Norte, foi "fisgado pela literatura e filosofia francesas":
"Flechas de metal ou de madeira, corpo penetrante de palavras invejáveis, temíveis, inacessíveis mesmo quando
entravam em mim, frases das quais era preciso se apropriar, domesticar, amansar [...] talvez destruir, em todo caso marcar, transformar, talhar, entalhar, forjar, enxertar, tornar diferente, para dizerem de outra maneira, para si e em si".
E expõe esse sonho, não de ferir a língua ou maltratá-la, mas de fazê-la converter-se em outra coisa, "essa língua que permanece intacta, sempre venerável e venerada".
Novamente, esse movimento do qual falava Chamoiseau. Mas, de um modo mais abrangente, mesmo que a leitura não faça de nós escritores, ela pode, por um mecanismo parecido, nos tornar mais aptos a enunciar nossas próprias palavras, nosso próprio texto, e a ser mais autores de nossas vidas.
Nessa leitura, o escritor e o leitor constroem-se um ao outro; o leitor desloca a obra do escritor, e o escritor desloca o leitor, às vezes revelando nele um outro, diferente do que acreditava ser. Disse "o escritor" e não "o autor". E agora há pouco, para falar do leitor trabalhado por seu encontro com um texto, passamos da leitura em geral para essa experiência particular que é a leitura de uma obra literária. Efetivamente, na literatura, o escritor faz justamente um trabalho de alteração da língua. É o que dizia Roland Barthes, que destacava a profunda ligação entre língua e poder: "a linguagem é uma legislação", dizia, ou melhor: "Assim que ela é proferida, seja na intimidade mais profunda do sujeito, a língua entra a serviço de um poder". Porém Barthes observava também:
"[...] só resta, por assim dizer, trapacear com a língua, trapacear a língua. Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem, eu a chamo, quanto a mim: literatura. [...] As forças de liberdade que residem na literatura não dependem da pessoa civil, do engajamento político do escritor que, afinal, é apenas um 'senhor' entre outros, nem mesmo do conteúdo doutrinal de sua obra, mas do trabalho de deslocamento que ele exerce sobre a língua [...]".
Não examinarei aqui a experiência da leitura literária; não sou particularmente qualificada para isso, e seriam necessarias não quatro conferências, mas anos. Gostaria apenas de propor algumas balizas, parciais, fragmentárias. Vou tomá-las de empréstimo, ainda esta vez, aos escritores. Mas vocês poderão ver que voltaremos a encontrá-las nos próximos dias, na boca de leitores menos eruditos.
Por exemplo: ler permite ao leitor, às vezes, decifrar sua própria experiência. É o texto que "lê" o leitor, de certo modo é ele que o revela; é o texto que sabe muito sobre o leitor, de regiões dele que ele mesmo não saberia nomear. As palavras do texto constituem o leitor, lhe dão um lugar.
Os escritores, sobretudo, colocam palavras ali onde dói. Como escreve Jean Grenier: "Vim dar meu testemunho, diz o escritor, para tirar esse peso de seu peito. Não pode nos curar; mas lhe agradecemos por ter visto nosso mal". As palavras podem manter a dor e o medo a distância; as palavras que
lemos, as que escrevemos, as que ouvimos. Muitos escritores falaram sobre isso de diferentes maneiras. Como Rilke, no início de Os cadernos de Malte Laurids Brigge: "Fiz algo contra o medo. Fiquei sentado e escrevi". Ou o escritor austríaco Winckler, que observa: "Com minhas palavras, desenho uma prisão ao redor do temor". E ao redor de nosso próprio temor. De um modo semelhante, no conto, por exemplo, diferentemente do pesadelo, as sombras são mantidas a distância pelos símbolos. O escritor suíço Nicolas Bouvier observa que, no Japão, os contos "administram e controlam a imensa fauna de fantasmas perniciosos que povoam e percorrem a noite, sobretudo no verão".
Os escritores nos ajudam a nomear os estados pelos quais passamos, a distingui-los, a acalmá-los, a conhecê-los melhor, a compartilhá-los. Graças a suas histórias, escrevemos a nossa, por entre as linhas. E porque tocam o mais profundo da experiência humana — a perda, o amor, o desespero da separação, a busca de sentido — não há razão para que os escritores não toquem cada um de nós. E é exatamente nesse ponto que jovens escritores vindos de meios desfavorecidos podem, muitas vezes, se encontrar com eles. Com freqüência esses jovens relatam como certos textos, nobres ou humildes — mas também filmes ou canções —, lhes ajudaram a viver, a pensar em si mesmos, a mudar um pouco seu destino. E não somente na adolescência.
Uma vez mais acredito que, com essa dimensão da leitura em que a leitura "trabalha" o leitor, estamos longe das divisões estabelecidas que opõem, por exemplo, os partidários da leitura "utilitária" aos da leitura de entretenimento. Quando
encontro palavras que me perturbam porque permitem expressar o que tenho de mais íntimo, assumo que isso é algo "útil" ou é um "prazer"? Como disse Freud, talvez seja algo que está "além" do prazer...
Por meio dessa leitura, desses encontros, elaboramos um espaço interior, um país próprio, inclusive em contextos onde parece não nos ter sobrado nenhum espaço pessoal, como é o caso do jovem prisioneiro martinicano. É o que diz um outro escritor, Pascal Quignard, para quem a página lida "é o outro mundo que se opõe a todos os lugares por onde se ramifica a família e onde se encaixam a pequena cidade, a nação e o conjunto dos contemporâneos". Ou é o que diz Agiba, uma jovem que entrevistei e que adora ler desde a infância: "Tinha um segredo, meu universo próprio. Minhas imagens, meus livros e tudo isso. Meu mundo está nos sonhos".
Esse mundo, como ela observa, tem a ver com o segredo. De um lado, ele protege da repressão, que atinge tudo o que diz respeito ao íntimo (voltarei a isso quando falar sobre o medo do livro), protege da intrusão de seus pais ou de educadores indiscretos. Mas há ainda outra coisa: a idéia de que toda palavra verdadeira tem uma dimensão oculta. Muitos escritores afirmaram isso, que a leitura tem a ver com o segredo, com a noite, com o amor e com a dissolução da identidade. E ela pede o mesmo pudor que o amor. Marguerite Duras observou em uma entrevista: "Pode ser que se leia sempre no escuro. A leitura é da ordem da obscuridade da noite. Mesmo quando lemos em pleno dia, ao ar livre, se faz noite ao redor do livro". E Michel de Certeau: "Ler é estar em outro lugar, ali onde eles não estão, em outro mundo [...] é
criar cantos de sombra e de noite em uma existência submetida à transparência tecnocrática".
Esse espaço íntimo aberto pela leitura não é apenas uma ilusão ou uma válvula de escape. Às vezes pode ser: nós nos consolamos das vidas, dos amores que não vivemos, com as histórias dos outros. Mas é, sobretudo uma fuga para um lugar em que não se depende dos outros, quando tudo parece estar fechado. Isso nos dá a idéia de que é possível uma alternativa. Esse espaço íntimo é muito povoado: passam por ali fragmentos de frases, escritas ou ditas por outros, que juntamos e que revelam essa parte oculta de nós mesmos.
E esse espaço íntimo nos dá um lugar. A partir daí, dessa outra maneira de ocupar o tempo que nos é dado quando lemos, temos uma outra percepção do que nos cerca. E podemos dar sentido às nossas vidas, construir um sentido. Como o construiremos? Com histórias, diz Salman Rushdie: "Por meio das histórias, nos construímos". Diz também, em Pátrias imaginárias: "O significado é um edifício que construímos com fragmentos, dogmas, feridas de infância, artigos de jornais, observações feitas ao acaso, velhos filmes, pequenas vitórias, pessoas que odiamos, pessoas que amamos".
Parece-me que tem razão: é a partir de fragmentos, apanhados aqui e ali, que fabricamos o sentido. O sentido não é, ou não é mais, em nossa época de fim das ideologias, um sistema total que dirá a última palavra, a razão de ser de nossa presença na terra. Ainda uma citação, a propósito dessa busca de sentido, desta vez de um escritor americano, Richard Ford. O narrador, ao lembrar do pai que lia para ele, observa o seguinte: "Quando lia para mim, talvez procurasse me dizer:
'Não sabemos tudo. A vida tem mais significados do que parece. F preciso ficar atento'".24 O significado não é algo dado: é alguma coisa para a qual nos inclinamos, um movimento, uma disposição, uma capacidade de acolher. Uma forma de estar atento, como ele diz.
Às vezes, a leitura nos dá o apoio de uma definição. De uma forma, uma ordenação. Sentimos que existe, em alguns textos escritos por escritores, um pouco mais de verdade que em outras formas de expressão lingüística. Porque o escritor quebra os estereótipos, renova a linguagem, caça os clichês — o bom escritor, ao menos. E é um dos raros que fala das contradições e das ambivalencias das quais somos feitos. Inclusive, é sobre essas contradições, essa parte obscura do coração humano, que ele, com mais freqüência, trabalha.
Esses são alguns dos fragmentos sobre a experiência da leitura de obras literárias. Apoiei-me bastante nesses leitores muito eruditos e muito cultos que são os escritores. Mas amanhã vocês verão que, com outras palavras, muitos jovens leitores de meios sociais desfavorecidos dizem coisas parecidas. E eu gostaria de insistir no fato de que a leitura de obras literárias, quando representa uma experiência singular, não é uma afetação. Infelizmente, os pobres são privados, na maior parte do tempo, dessa experiência, pois não têm acesso aos livros, ou só têm acesso a alguns livros: dizem que outros não são para eles. É um tema sobre o qual voltaremos a falar.
No entanto, existem pessoas dos setores mais pobres da população que tiveram a oportunidade de ter acesso aos livros, e experimentaram — em alguns casos por meio de um único texto — toda a amplitude da experiência da leitura.
Nela, encontraram palavras que as transformaram, as trabalharam, às vezes muito tempo após tê-las lido. Inversamente, certas pessoas nascidas em bairros ricos falam de literatura nos salões e sentimos, ao ouvi-las, que nunca passaram por essa experiência, essa transformação. Procuraram nos livros apenas um modo de impressionar os amigos. Falam de literatura, mas é como se pessoas frígidas fizessem um discurso sobre o amor carnal.
Longe dos salões, podemos lembrar também como as palavras dos poetas ajudaram a "sustentar" aqueles que se encontravam sob sofrimentos extremos; podemos evocar todos aqueles que, na dor, mantiveram a dignidade recitando versos. Lembremos do papel que estas palavras representaram para tantas pessoas, nos campos de concentração, durante a Segunda Guerra Mundial. Ou, para outros, nos campos stalinistas. De maneira mais geral, gostaria de dizer que talvez não exista exclusão pior que a de ser privado de palavras para dar sentido ao que vivemos. E nada pior que a humilhação, no mundo atual, de ficar excluído da escrita.
É com emoção que vou lhes contar agora uma recordação. Todo ano, viajo um pouco pela Grécia; eu falo com bastante fluência o grego moderno. Um verão, em uma dessas viagens, conheci uma senhora, no campo, que me contou sua vida. Nasceu em uma família de dez crianças e muito cedo foi adotada por um tio que precisava de uma pastora. Porém, era tão curiosa a respeito de tudo, que a professora da cidadezinha conseguiu que a deixassem ir à escola por alguns meses. Até uma manhã em que seu tio veio buscá-la para que levasse as cabras para pastar. Ela nos disse: "E todos os dias da minha
vida, no meio dos animais, desenhei com um graveto as letras de meu nome na terra para que o sono não as levasse".
Acho essa história comovente e é a primeira vez que a conto em público. Exponho-a simplesmente para lembrar-lhes como uma pessoa pode se sentir fora do mundo quando não pôde se apropriar da escrita. Aprendemos a olhar as civilizações orais de um modo diferente, sabemos que podiam ser territórios de cultura muito elevada. Mas, hoje em dia, na maioria das sociedades, ficar excluído da escrita é ficar excluído do mundo. Muitas pessoas que não têm acesso à escrita ou não conhecem bem seus usos, sentem-se indignas. Por isso não posso concordar aqui com alguns de meus colegas antropólogos que, em nome de princípios mais nobres, gostariam que mantivéssemos longe da contaminação da escrita um ou outro grupo étnico, como um modo de preservar sua particularidade.
Ao compartilhar a leitura, ao contrário, cada pessoa pode experimentar um sentimento de pertencer a alguma coisa, a esta humanidade, de nosso tempo ou de tempos passados, daqui ou de outro lugar, da qual pode sentir-se próxima. Se o fato de ler possibilita abrir-se para o outro, não é somente pelas formas de sociabilidade e pelas conversas que se tecem em torno dos livros. É também pelo fato de que ao experimentar, em um texto, tanto sua verdade mais íntima como a humanidade compartilhada, a relação com o próximo se transforma. Ler não isola do mundo. Ler introduz no mundo de forma diferente. O mais íntimo pode alcançar neste ato o mais universal.
A pobreza material é temível porque priva a pessoa não apenas dos bens de consumo que tornam a vida menos dura, mais fácil, mais agradável; não apenas dos meios de proteger a própria intimidade; mas também dos bens culturais que conferem dignidade, compreensão de si mesmo e do mundo, poesia; e priva ainda das trocas que são realizadas em torno desses bens. A pobreza impede de participar em uma sociedade, de estar ligado ao mundo através do que produziram aqueles que o integram: esses objetos culturais que circulam e desembocam em outros círculos diferentes do parentesco ou do bairro, que são o espaço do íntimo e do que se compartilha para além das fronteiras do espaço familiar. E para se pensar, se definir, muitas vezes, só resta aos pobres se ligar a uma comunidade mítica ou a um território, mesmo que seja um pedaço de calçada.
Pois bem, fiz um longo périplo sobre essas duas vertentes da leitura, detendo-me na segunda, em que o leitor dialoga com o texto, em que é trabalhado e alterado por ele.