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sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Lencinho Vermelho

NOVE CHAPEUZINHOS
Flavio de Souza


NA CAPITAL DO IMPÉRIO DO BRASIL, EM 1888                                                                   LENCINHO VERMELHO  

                                                                                                                                                                  Uns diziam que a pena já estava na mão direita da princesa Isabel, filha de dom Pedro II, o imperador do Brasil. E que a escravidão ia ser abolida. Mas outros diziam que a pena vivia caindo da mão da princesa, que relutava em assinar documento tão importante. Porque a escravidão era importante para algumas pessoas importantes. No final do século XIX, na cidade do Rio de Janeiro, muitas pessoas ainda eram tratadas como se fossem inferiores. Pior que isso, eram tratadas como se não fossem pessoas. Pior ainda, eram tratadas como se fossem animais, como vacas, bois e cavalos. E só eram bem tratadas o suficiente para permanecer com saúde e poder realizar tarefas pesadas em plantações e usinas de açúcar, entre outros lugares. Esses seres humanos tinham vindo, contra a vontade, da África. Ou eram filhos ou netos de quem tinha vindo de lá, de locais que hoje se chamam Angola, Senegal, Guiné, Congo, Moçambique... Mas então, no ano de 1888, no dia 13 de maio, a princesa assinou a tal da Lei Áurea, que libertou os africanos ou filhos ou netos ou bisnetos de africanos. Só que essa liberdade só existia, para valer, no papel. Porque eles estavam do lado errado do oceano Atlântico. Porque a casa onde eles ou os pais ou avós ou bisavós deles tinham morado ficava na África. E eles estavam na América do Sul. Então eles não tinham um lar para onde voltar. Não tinham dinheiro para comprar ou alugar um lugar para morar. Não tinham emprego. Não tinham diploma. Não tinham o tipo de educação necessário para conseguir um emprego remunerado. Então a maioria deles continuou morando e trabalhando para os antigos donos. Na teoria, homens livres. Na prática, ainda escravos. Foi nesse ano e nessa cidade, que no século seguinte ganhou o apelido de "cidade maravilhosa", que esta história se passou. Bibinha acordou com as galinhas, naquela hora em que até o dia ainda está em dúvida se vai raiar. Como sempre fazia, desde quando tinha três ou quatro anos, a menina magricela e lindinha pulou da cama e logo tratou de ir à cozinha. Lá tomou um golinho do caldo de canjica que era seu primeiro café-da-manhã. Foi ao tanque, lavou a cara, bochechou, ajeitou o cabelo pixaim, penteando-o como uma coroa. Vestiu o avental, que depois segurou formando uma tendinha. Jogou nela as migalhas deixadas de lado pela dona Dita, a rainha do forno a lenha. E foi alimentar suas amigas. Quando tinha acabado de contar seu último sonho para a Ruiva, sua preferida, ouviu a mãe, que por coincidência era aquela mesma dona Dita já antes mencionada, chamá-la: "Bárbara! Venha cá buscar um embornal para levar para sua avozinha, que está doente e sozinha, depois que morreu a sinhazinha." Bibinha, mal ganhou a broa de milho que era seu segundo café-da-manhã, junto com um golinho que na verdade era bem um golão de café com leite, correu para seu cantinho. Lá, enrolou e amarrou e ajeitou seu lenço da sorte. Esse lenço era um pano tecido por aquela mesma avó já mencionada. Isso bem antes de estar como estava naquele dia: cansada e
sozinha, desde a morte da sinhazinha. Como não saía de casa sem o lenço vermelho enrolado na cabeça, muitas vezes Bibinha era chamada carinhosamente, ou nem tanto, de "Sacizinha". Porque o lenço vermelho bem que parecia mesmo o capuz de um pretinho maroto de uma perna só. Mas havia também quem a chamasse de "Lencinho Vermelho". E foi assim, vestida do pescoço para cima como saci, que saiu pelo portão dos fundos. Atravessou a horta. Pulou o muro. E foi, pirilampa, descendo a ladeira. As ruas ainda estavam escuras e vazias. Quase vazias, para dizer a verdade, porque as velhas beatas arrastavam os chinelos para assistir à primeira missa. E os pedintes, que tinham dormido pelas calçadas, se levantavam para evitar dormir atrás das grades na noite seguinte. Bibinha ia à missa também, mas só aos domingos e dias santos. Mas na imaginação da menina, os deuses, heróis, fantasmas e monstros africanos, trazidos na bagagem de seus avós, se misturavam com Jesus, Nossa Senhora e todos os santos. Ela não acreditava em nada daquilo. Mas nem por isso aquilo tudo deixava de existir. Foi assim que, justo naquela praça, onde ficavam só prédios antigos do governo, aonde os funcionários só iam chegar muito, mas muito mais tarde mesmo, que Bibinha se encontrou com o tutu marambá, um tipo de bicho-papão daqueles tempos. Esse era só um dos vários tutus que existiam, um daqueles que podiam, dançando, virar gente. Esse já tinha virado. E veio cantando, alegre, gingando. Parando na frente da menina, falou zumbindo nas palavras: "Óia quem tá vindo, e tá indo adonde?" "Tô indo visitar minha avozinha, que está magra e doente. Mas para chegar na casa dela eu ainda tenho de subir e descer dois morros." "Mas que neta de ouro, vejam só!" Bibinha não tinha como saber que aquele senhor era um tutu disfarçado. E contou a ele tudo o que tinha no balaio, embrulhado em guardanapos, do cuscuz ao doce de batata-doce. E o tutu, enquanto a menina contava, ia cantarolando uma canção. Acontece que essa canção era encantadora, de fazer as crianças ficarem com sono. E quem está com sono faz coisas que não faria se estivesse bem acordado. Foi assim que esse tutu marambá convenceu a menina a contar direitinho onde morava sua avó, que estava sozinha depois da morte da sinhazinha. Então, enquanto a menina subia e descia os dois morros que ainda faltavam para chegar na casa da avó, o tutu voava por cima, porque desta vez tinha se transformado em besouro. E ele logo chegou ao quintal da avó de Bibinha, onde a velha dormia na rede da varanda. A avó, por sinal, se chamava Bárbara, como a neta, mas era conhecida como "Nhá Bá". Mesmo adormecida, comia uma banana-da-terra e uma espiga de milho. E ao mesmo tempo pitava o cachimbinho apagado. De besouro, o tutu se transformou em pilão. E se fez grande, enorme, gigantesco. E disse: "Óia quem tá aqui, Nhá Bá!" A velhinha acordou espantada, cuspiu o cachimbo e o que de banana e de milho estava em sua boca, e gemeu: "Vixe! É um tutu marambá virado pilão enorme de grande! Ou Nhá Bá tá engomando a gola da camisola de baba, de tão doida?" O tutu não conseguiu mentir, e disse que ela não estava doida não, que ele era tudo aquilo, e que ela ia morrer naquele instante. Ela agradeceu, porque finalmente ia voltar para Ndongo, de onde tinha sido roubada. O tutu não parou para ouvir mais nada. E colocando a pobre velha dentro de si, socou a vovozinha até fazer uma paçoca apetitosa daquelas. Voltou a ser tutu, e a
engoliu com um bocado de farinha de mandioca. Depois deitou na rede, para jiboiar e esperar a menina. Bibinha chegou logo depois e já foi chamando a avó: "Vó Bá, sou eu, a Bibi!" "Vixe! E não é que é você mesmo?", disse o tutu, pensando que conseguia imitar a voz da avó, que tinha virado paçoca. "Vixe digo eu, vovozinha! Vó Bá, mas a senhora tá com voz de tutu!" "Mas não é mesmo de espantar?", perguntou o tutu. E sem mais vontade de jogar conversa fora, logo se transformou em pilão com fome de paçoca. Bibinha tinha a pele bem escura, lisinha e macia. Mas se você estivesse lá, ia ver a menina ficar branca por causa do susto que levou. E parada, esbugalhada feito um espantalho ela ficou, enquanto o tutu-pilão ia ficando grande, enorme, gigantesco. Foi então que Bibinha lembrou que tinha de cantar aquela canção que a avó cantara tantas vezes. Era só cantar a canção de ninar que o bicho-papão ia embora. Mas cadê voz? Rouquinha de tudo, Bibinha tentou soltar um arzinho que fosse, que acompanhado de palavras, mesmo que só pensadas, já iam causar o fim daquele sofrimento. O tutu marambá, que além de mau era trocista, disse rindo todo alegre para a menina: "Óia! Não fique triste não, que dentro em pouco você vai conhecer a tal de Nhangaba, a terra de onde sua avó veio." "Que Nhangaba o quê, bicho burro!?! Foi de Ndongo que ela veio!" Menina e monstro ficaram se olhando, os dois tinham percebido ao mesmo tempo que a voz da menina tinha voltado. E ele já levantou o pau do pilão em que tinha se transformado, para dar o primeiro golpe. Mas foi ficando molinho, molengo, sorumbático, porque Bibinha, lépida e ligeira, cantou assim: Tutu marambá, não venha mais cá que a mãe da criança te manda matar! Tutu marambá, não venha assustar que o pai do nenê vai te pegar! E assim aquele tutu foi se desmilingüindo, virando mingau. E de dentro dele foi saindo Nhá Bá, feito gente de novo. Só que agora ela não estava mais sozinha, coitadinha, depois da morte da sinhazinha. Porque lá estava sua netinha querida e lindinha, a Bibinha. Para quem a espantada senhora exclamou: "Vixe! Que sonho doido teve sua avó Bá! Fui de mulher a paçoca, e de bolo no estômago de papão voltei a mulher, num rápido de repente. E agora, contente, com a presença de minha criança preferida, amém!" E então aconteceu que Nhá Bá, depois de passar um paninho no chão da varanda, ainda viveu um montão. E sua neta cresceu e casou e teve filhos, e os filhos deles contaram para os filhos, que contarão aos filhos, que viverão felizes para sempre e contarão a quem quiser ouvir as aventuras de Nhá Bibi, a mulher que, quando menina, venceu o tutu marambá!


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